sexta-feira, 2 de julho de 2010

A Celeste



"Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos."
Nelson Rodrigues

Quem teve a oportunidade de acompanhar esta partida, além de ser testemunha ocular da história, pode sentir na pele o que torna o futebol tão fascinante. Em particular, é mais uma prova do poder e da mística que envolve a camisa celeste. Tem coisas que só o azul clareado pelo sol uruguaio é capaz de fazer, esse jogo foi uma delas.
Quando me sentei no sofá da casa do Couto e vi o hino uruguaio sendo executado, fiquei pensando sobre o que poderia acontecer no jogo. Tendo em conta o retrospecto não empolgante de Gana, que se classificou mais na base da sorte, passou suado dos malditos ianques e sem sua principal estrela, o monstro Essien. Não achava que o jogo seria fácil, afinal com o Uruguai sempre tem emoção, mas não tinha a mínima idéia do que estaria por vir.
A bola rola e o Uruguai tem um toque de bola rápido, chega algumas vezes no gol ganês bem guardado por Kingston. Na metade do primeiro tempo a equipe africana começa a por as asinhas de fora e me deixa vendo a bola nas redes duas vezes, numa cabeça rente ao ângulo e um chute que tira tinta da trave. Foram dois sustos tensos. O capitão Lugano sai machucado após uma queda brusca, mas a tristeza de ver o belo e viril zagueiro saindo é amenizada quando vejo ANDRÉS SCOTTI entrar em campo. Scotti é um zagueiro à moda antiga, do tipo que ainda "manda flores" aos atacantes. Alto, forte, bruto como uma pedra e não tem medo de cara feia. Scotti aliás, merece um capítulo a parte na história do jogo. Salvou três jogadas impressionantes, uma bola em que o atacante ganês dominou girando no meio da área, quase na marca do penalti, mas entre ele e a bola apareceu imponente e altaneiro Scotti para evitar o chute. Já na prorrogação, o assustador Arévalo faz uma lambança demente na área e perde a bola. Quem aparece de carrinho para bloquear do chute, arrumar a bagunça e ainda deixar uma marca roxa no tornozelo de Gyan? Scotti, claro. E por fim, em mais um lance capital, Scotti aparece antes do atacante ganês após um rebote do goleiro Muslera e evita que este finalize em direção ao gol desprotegido. Agora, deixando o show de Scotti um pouco de lado e voltando ao jogo como um todo, a segunda metade do primeiro tempo foi marcada por chegadas incomodas que, aos 46 minutos resultaram no gol de Muntari. Um chute despretencioso a 34 metros do gol. Uma curva bizarra dessa bola que ninguém entende e o Uruguai sofre o segundo tento no mundial. Fim de primeiro tempo.
O time celeste volta se impondo, Forlán decide entrar no jogo e o técnico Oscar Tabárez lança o virgem Lodeiro no lugar do frango Álvaro Fernandez, pra dar mais força e alternativa na criação. E dá relativamente certo, tanto que aos 14 minutos numa falta em que a maioria cruzaria na área, Forlán solta uma bomba que entra rente ao travessão de Kingson. Um golaço, partida empatada. A partir daí, os dois times revezaram as rédeas do jogo. Diego Pérez, volante uruguaio, um guerreiro em campo. Não no sentido brahmeiro dos comerciais, e sim na mais pura essência do futebol latino. Correu o tempo todo, brigou, dividiu, levou amarelo em um carrinho forte, lutou o tempo todo. Victorino, já conhecido dos Flamenguistas podres, ajudava com maestria a fechar a zaga uruguaia. Até que o divino se fez presente, todas as atenções se voltam a um só homem: Washington Sebastián Abreu Gallo, o louco, o gênio. Com seus cabelos esvoaçantes e barba por fazer, dá gás ao cansado ataque celeste. Não teve uma chance de finalizar durante a partida, mas o craque sobressai mesmo nas dificuldades. Sofreu um penalti não marcado na prorrogação e comandou o ataque uruguaio enquanto esteve em campo. Aliás, vale ressaltar que as câmeras sul-africanas gamaram no Abreu, pois ele era mostrado a todo momento.
Aí chega o momento do imponderável. O instante que só o futebol proporciona. Falta no lado esquerdo da defesa uruguaia, quinze minutos do segundo tempo da prorrogação, o que torna esse ataque o último lance do jogo. A bola será cruzada na área, eu me viro para o Gabeh e digo: "Ah cara, tomar gol agora não dá... muito castigo. Não vai acontecer." A bola sobe. A bola desvia na cabeça de um ganês e vai pra trás. A bola plana na boca do gol. Muslera sai, porém Appiah cabeceia antes. A bola quica na pequena área e o atacante de gana chuta. A bola bate nas pernas de Suárez e volta para a pequena área. Mais uma vez Gana cabeceia a bola em direção ao vulnerável gol uruguaio e num segundo, logo após ser preciso ao salvar a bola em cima da linha, Suarez é o único entre a bola e a rede, desta vez a jabulani não toma a direção de suas pernas. Vai acima de sua cabeça, abaixo do travessão, pronta para estufar as redes e num lapso de genialidade, numa decisão passional, em um puro reflexo desesperado Suárez ergue as mãos e espalma a bola para frente. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Era a última bola do jogo, era a sentença da eliminação uruguaia. Suárez fez a única coisa que poderia ser feita para dar alguma sobrevida, mesmo que frágil, aos uruguaios. Qualquer outra atitude, qualquer atraso mínimo ou hesitação curta teria permitido que a bola entrasse. Suárez não permitiu. Dezesseis minutos do segundo tempo da prorrogação, último minuto de jogo e pênalti para Gana. Suárez expulso chora copiosamente, sabe que sua atitude de um herói aflito deve eliminar sua nação, que há quarenta anos esperava por esse momento. Gyan, que já fez dois gols de penalti nesta mesma Copa coloca a bola na marca. Se ele fizer o gol, pela primeira vez uma seleção africana chegará a uma semifinal de copa do mundo e ele se juntará ao camaronês Roger Milla como maior artilheiro africano numa copa. Todo mundo sabia que seria gol. O coração celeste batia descompassado, querendo acreditar na ínfima possibilidade da bola não se encontrar com a rede. Em menos de um minuto, o choro de Suárez se transforma em berro. Suas lágrimas secam em altos decibéis de êxtase. O chute forte de Gyan bate na trave e voa pra cima do gol. O Uruguai está vivo! A partida vai para os penaltis.
Forlán, Scotti e Victorino fazem para o Uruguai. Mensah perde para Gana. Maxi Pereira isola a bola e dá a Gana a chance de empatar as cobranças. Muslera pega outra penalidade. Agora o palco está armado para a consagração de um louco. Abreu vai para a cobrança, e todos que o conhecem sabiam o que iria acontecer. Ele iria dar um tapinha à Panenka na bola, como já fez contra o Brasil na copa américa e os porcos rubro-negros no carioca. É exatamente o que acontece, o sutil toque de Abreu põe o Uruguai entre as quatro melhores seleções do mundo. Da forma mais uruguaia possível.

Viram crianças, é por isso que eu digo e repito que desde a primeira vez que eu entrei em um campo de futebol, eu renasci uruguaio. Não tem como não se apaixonar por esse entrega, luta e raça. Nenhuma outra seleção faria isso, o Uruguai fez. Sempre superando a si mesmo, transpondo limites. Isso é futebol. Isso é Uruguai.