quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Schopenhauer acerca dos carroceiros estalando seus chicotes

"Não posso deixar de denunciar o estalo verdadeiramente infernal dos chicotes nas
vielas rumorosas das cidades como o barulho mais irresponsável e vergonhoso de todos,
que rouba da vida toda tranqüilidade e concentração. Nada me dá uma idéia tão clara da obtusidade e da inadvertência dos homens do que a permissão de chicotear. Esse estalo repentino e agudo, que paralisa o cérebro, despedaça e mata qualquer pensamento, deve ser sentido dolorosamente por todos os que tenham dentro da própria cabeça qualquer coisa que se assemelhe a um pensamento: portanto, perturba centenas de pessoas em suas atividades intelectuais, por mais simplórias que sejam, e mais ainda o pensador, em cujas meditações penetra de maneira tão dolorosa e funesta como a espada do carrasco, que separa a cabeça do tronco. Nenhum som fere o cérebro de
modo tão cortante quanto esse maldito estalo de chicote. Chega-se a sentir a ponta do
chicote batendo no cérebro, no qual age como o toque da mão na mimosa pudica, e até
por mais tempo. Com todo o respeito pela sacrossanta utilidade, não consigo entender
por que um serviçal que conduz uma carroça com areia ou esterco deva receber o
privilégio de sufocar o germe de todo pensamento em ascensão no cérebro de dez mil
cabeças sucessivamente (meia hora ao longo das ruas da cidade). Marteladas, latidos e
gritos de crianças são horríveis, mas o único e verdadeiro assassino de pensamentos é o estalo de chicotes. Parece ter sido criado exclusivamente para triturar todos os
momentos bons e de reflexão que vez por outra alguém consegue ter. [...] Esse maldito
estalar de chicotes não só é desnecessário, como chega a ser inútil. O efeito psíquico desejado nos cavalos, devido ao hábito causado pelo abuso contínuo de tal recurso, diminui e acaba perdendo totalmente seu objetivo: os cavalos não apressam o passo com o estalar do chicote. [...] Supondo-se, porém, que fosse imprescindível usar tal som para lembrar constantemente os cavalos da presença do chicote, bastariam estalos cem vezes mais fracos, pois é sabido que os animais são capazes de perceber até os sinais mais silenciosos, quase imperceptíveis, tanto pela audição quanto pela visão. Os cães adestrados e os canários são exemplos surpreendentes dessa constatação. Por conseguinte, estalar chicotes representa um puro arbítrio, ou até mesmo um escárnio insolente por parte dos trabalhadores braçais em relação aos intelectuais. Tolerar semelhante infâmia nas cidades é uma barbárie grosseira e uma injustiça; tanto mais quanto seria até mesmo fácil eliminar, por decreto policial, um nó na ponta de cada chicote. Não há mal nenhum em chamar a atenção dos proletários para o trabalho intelectual realizado pelas classes que lhe são superiores, pois estes temem o trabalho intelectual mais do que tudo. Nem todos os filantropos do mundo, com todas as assembléias legislativas, que por boas razões são contra as punições corporais, poderão me convencer de que um serviçal, que cavalga pelas ruas estreitas de uma cidade muito populosa, conduzindo livremente cavalos do correio ou montando um cavalo de carroça desatado, ou até mesmo que caminha ao lado dos animais, estalando incessantemente e com toda a sua força o seu longuíssimo chicote, não mereça ser obrigado a desmontar imediatamente para receber cinco bastonadas bem dadas. [...] Terá o intelecto pensante de ser o único a nunca experimentar a menor consideração, nem a menor proteção, menos ainda respeito, em prol desse cuidado tão generalizado com o corpo e de todas as formas de contentá-lo? Carroceiros, carregadores, pessoas ociosas que ficam nas esquinas e similares são os animais de carga da sociedade humana; devem, sem dúvida, ser tratados humanamente, com justiça, benevolência, indulgência e cuidado: mas não lhes deve ser permitido que, com o rumor insolente que produzem, tornem-se um impedimento às aspirações elevadas do gênero humano. Eu gostaria de saber quantos grandes e belos pensamentos já foram banidos do mundo pelo estalar desses chicotes.
Se eu fosse um dirigente, criaria na cabeça dos carroceiros um nexus idearum [nexo de
idéias] indestrutível entre estalar chicotes e receber bastonadas."

A arte de insultar, página 22.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"...Onde o lento suicídio de todos chama-se vida."

Quando Nietzsche diz a célebre frase "O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama 'a vida'." ele explica bem a sociedade constuída pelos homens. Lugar onde todos parecem agir a fim de tornar a existência mais insuportável do que ela já é. Onde o venenho peçonhento que escorre das mentes doentes e atos cruéis de cada um é absorvido a cada dia por todos que abrem seus olhos e levantam de suas camas para buscar algum sentido ou dignidade para suas vidas, ou simplesmente vagarem inertes sem saber por que ou pra onde, pelo frívolo fato de estar e ser.
O que essa frase não demonstra é que além do suicídio que é viver no Estado, existir é também ser assassinado. O mundo lhe tira tudo de mais valioso que te compõe. Sua família, sua juventude, sua inocência, seus sonhos e por fim, quando nada mais resta além de um corpo definhado e desanimado, por vezes sem consciência de si, o mundo lhe tira sua própria vida. A carne podre, os restos de tudo que um dia já foi durante um pequeno lapso, é decomposta por vermes. As cinzas se espalham e evaporam no ar. E nada mais é.
Enquanto vivemos, somos usurpados a cada dia. Todo segundo matam um pouco de nós. A família que te trouxe, te acolheu, te alimentou e te construir vai sendo morta e lhe deixando só. Você os vê sofrer, os vê partir e acabar. O que fica é a sensação do término, da dor e do sofrimento daquilo que você mais prezava, do que te dava mais força pra viver. Acabou. E vai continuar acabando até você acabar também. É a pior e mais dolorosa das obviedades.
O momento em que existir mais nos esmaga é quando percebemos a insignificância de tudo. Qualquer que seja nosso alicerce, ele é poroso e insignificante. É quando nos é revelado que você um dia, não muito distante, perderá tudo. Sobra o consolo de que um dia, até as piores dores e amarguras vão terminar também. Assim como tudo termina.

Vida, o lento suicídio coletivo e o lento assassinato individual.