segunda-feira, 4 de abril de 2011

Admirável Futebol Novo

Em um domingo nublado, num futuro não muito distante, dez mil pessoas vão se dirigindo ao mesmo lugar: A Arena Aluga-se. O complexo esportivo multi funcional passou a ser chamado assim porque o contrato de naming rights com a antiga empresa que patrocinava o local expirou fazem dois meses e o processo burocrático para firmar novo contrato ainda está em tramite.
Há muito tempo atrás essa arena era conhecida por algum nome relacionado ao clube, porém ninguém se lembra disso depois de trinta e sete empresas já terem batizado e rebatizado o lugar a cada fim de contrato ou aumento de proposta. Ninguém também poderia pesquisar sobre isso porque a documentação histórica se desfez em mofo e traças guardada após ser transferida para alguma sala subterrânea que servia também de depósito de objetos quebrados, quando um projeto de construção de cinemas e praça de alimentação demoliu o antigo Museu. Até hoje o discurso do Dono do clube na época, um árabe que ficou rico explorando minérios, está gravado numa placa de bronze: "História não gera renda, nosso clube precisa dar um passo a frente! Precisamos expandir nossos negócios para ganhar mais investidores." E uma chuva de aplausos glorificava as palavras do engravatado árabe. Apenas alguns velhos, irremediavelmente presos ao passado e incapazes de evoluir reclamaram na parte de fora, devidamente impedidos de entrar naquilo que agora era propriedade privada. Os mesmo que reclamaram quando o clube foi comprado, os mesmo que se oporam a todas as mudanças que fizeram do clube uma das referências mundiais.
Nessa tarde cinza de domingo, a arena Aluga-se vai receber o grande clássico local. Todos os jornais festejaram esse grande jogo durante a semana, o estonteante e quase increditável público de dez mil pessoas vai lotar a arena. Os torcedores em sua maioria trajados com a velha camisa do clube, lançada há três meses, esperam para ver a estréia do quarto uniforme contra o maior rival. Todos se sentam em poltronas reclináveis e ajustam os pequenos televisores para acompanhar cada frame dos replays. Em uníssono, alegre e harmoniosamente, cantam o nome do seu time e seus principais jogadores enquanto batem palminhas. É a festa máxima do futebol.
A torcida organizada e seus componentes sempre fanáticos, fazem um espetáculo esticando cachecóis com o nome e as cores do clube. O cenário para uma grande partida de futebol está armado.
Os times entram em campo, todos se abraçam e cumprimentam. A emoção toma conta de todos quando a bola começa a rolar. Até que o pior acontece, tomados por uma paixão incontrolável, o ambiente que há pouco tempo era sadio se torna um furacão de fúria. Torcedores locais começam a chamar o craque da outra equipe, um habilidoso camisa 74 que jogou nesse mesmo estádio como ídolo local há poucos dias, de "feio", "bobão" e "pastel". O juiz ameaça interromper a partida. Com certeza após ele relatar as ofensas na súmula, os torcedores ficarão sem assistir os jogos do seu time durante alguns meses.
Controlada essa confusão, esse péssimo exemplo para a sociedade e afronta a moral e bons costumes, a bola volta a ser a protagonista. E pouco depois, para a alegria da agora pacificada torcida da casa, o camisa 53, atacante matador abre o placar. Imediatamente ele vai direto consolar o goleiro e pedir desculpas por ter feito o gol, os adversários compreendem e num gesto de fair play lhe permite ir comemorar junto com seus companheiros de time. A torcida levanta e aplaude fervorosamente de pé, os mais exaltados até soltam gritos.
E no alto de uma colina, algumas centenas de metros distante, um velho homem observa tudo aquilo com os olhos flamejando indignação. Sua expressão é de tristeza. Ele sabe que a instituição que ele amava e tudo que ela significava acabou. Ele vê que o futebol não é mais um esporte. O futebol foi transformado num teatro lucrativo e normativo, como todas as coisas repugnantes da vida. Ele lembra que quando garoto o futebol lhe proveu os mais brilhantes sonhos, as maiores injeções de alegria e as maiores porradas de tristeza. Ele recorda que quando jovem, o futebol lhe servia como escape de um mundo errado, problemático, estressante e demasiado normativo. Na hora que a bola rolava e as cores do seu time estavam brilhando em seus olhos e cobrindo seu dorso, ele esquecia por 90 minutos e mais alguns acréscimos das pessoas morrendo em filas de hospitais, dos jornais mentirosos ávidos por poder e dinheiro, da inversão de valores patrocinada em todas as esquinas, da ditadura monetária, da hipocrisia e estupidez coletiva. O que antes era um lapso de libertação de todos os erros do mundo, agora é apenas mais um instrumento deles.

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