terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A última vez em Triagem


A imagem diante de você enquanto você é tratado feito lixo e fica jogado às traças como um animal esperando eternamente sem agua, sombra ou dignidade.

As últimas lembranças desse fatídico lugar já presumiam mais uma manhã sofrida. Toda a espera, todo o suor, toda a sede, o tédio, dor de cabeça, todas essas credenciais caminham junto a palavra Triagem. Saindo de casa 5:15 da manhã e chegando as seis, conforme manda o figurino. As ruas quebradas de cimento rachado e desnivelado, cortado por asfalto irregular e sinuoso continuavam as mesmas. As casas com a mesma sujeira, o ambiente todo com o mesmo ar soturno e lúgubre. Todos os apectos decadentes da civilização estão estampadas naquelas paredes sujas.
Após uma hora e meia na fila, encostado ao muro do exército, caminhamos para dentro para mais horas de espera. Nos são dadas informações de praxe óbvias e idiotas e a logística é explicada. A espera trajando pesadas calça jeans que fica cada vez mais difícil de carregar conforme se encharca de suor. O sol forte extrai gota a gota toda a água de seu corpo. Com a boca ressecada e a paciência devidamente massacrada, por volta de 9:30, recebo a notícia de que fui enquadrado no excesso de contigente. Não chegou a ser um alívio ou consolo porque já era esperado. Somente esbocei um sorriso com o seguinte diálogo a minha frente de um rapaz de óculos choramingando com expressão tristonha de quem havia acabado de ser convocado a contragosto a se apresentar ao exército:
- Mas aonde fica esse quartel? pergunta o pobre coitado
- É o forte do leme.. Se você pegar o 474, passa pelo centro e então.. mas aonde você mora? diz a até então atenciosa *feminino de soldado*
- Copacabana
- Ah! então você vai a pé meu filho, é no fim da praia.
Essas pequenas coisas que dão algum sentido ao alistamento militar obrigatório. Um merda desses tem que limpar privada mesmo.
E então mais espera. A boca seca, a cabeça não consegue pensar em outra coisa senão ir embora.. é mais que uma tortura física, é psicológica também.
Surge um oficial e com ele a esperança de chegar a hora de partir. Esperança que se revela vã a partir do momento em que ele de mãos vazias começa mais uma bateria de recados vazios e evidentes. Quando mais um diálogo, protagonizado pela estrela inesquecível Tenente Pimentel e sua lingua presa contra uma vítima sofredora:
- Filho, onde você foi designado a ir? em qual quartel. Diz o Tenente com sua voz marota e malandra
A resposta veio em forma de um sussurro ininteligível. Aliás, se entendia um "ss". Foi o suficiente para Pimentel e sua astúcia responder:
- SS minha pica, fala direito.
E pronto, mais gargalhadas na conta do lendário Tenente Pimentel.
Seguido disso mais espera. Uma demora que punha em prova meu equilíbrio psicológico, cada segundo soava como século. Enfim a redenção. O grito de liberdade foi um: "Lucas da Cunha o resto eu não sei". A euforia sofrida, a explosão de alívio e alegria. Minhas pernas estavam estafadas, minha cabeça quente e incapaz de formular qualquer pensamento que fugisse de "água" e "casa".
Tem aquelas peças que a vida prega na gente. Quando achavamos que era só curtir a salvação, a alforria militar, nos dirigimos a uma lanchonete humilde em uma esquina. Peguei um sprite de garrafa e coloquei na bancada. Uma velha gorda e maltratada olhou e ignorou solenemente. Eu, estupefado e aturdido pela sede, calor e cansaço, não entendi bem a espera da citada mulher em abrir minha garrafa. Até que outro aparece com a garrafa e esfregando uma nota suja de dois reais na cara dela e tendo sua garrafa prontamente aberta. Eu já estava puto da vida, fiquei mais ainda. Peguei a única nota que levava em minha carteira, de vinte reais, e falei que era só o sprite. Sou respondido da forma mais grosseira que se pode imaginar com a frase: "Num tem troco não." Mas que filha da puta... ela em toda sua estupidez e boçalidade me afasta do orgasmo gelado daquele sprite. A sorte é que o Couto me salvou e emprestou um real o qual eu completei com meus cinquenta centavos a paguei a garrafa. Que não foi aberta. Eu mais puto do que poderia imaginar que um dia ficaria, peço rispidamente pelo maldito abridor de garrafa. Se eu ao menos estivesse com meu chinelo e seu inusitado abridor de garrafa na sola. E então ela com uma cara fechada monstruosa de quem tem uma vida amarga abriu-a. E eu senti a presença de Deus. 290ml de Deus.
Voltei exarcebando minha raiva por aquelas mesmas ruas tristes mais quentes contra aquela que atrasou a salvação merecida. É por ser ignorante, boçal, tapada e rude que vai viver cerceada por sua mente pequena e limitada naquele lugar podre, feio e triste. Se afogando em suas amarguras e tristezas, com sua vida vazia torturando-a dia após dia. Contando os centavos para sobreviver mal e porcamente, levando consigo para sempre esse pobre comportamento filisteu.
Para completar a festa, o vagão do metrô contava com uma fedelha miserável com pais ordinários que aceitavam com um sorriso retardado os incessantes berros emanados por essa maldita infeliz. Como se não bastasse toda a fatiga, todo o desgaste psicológico de mais de cinco horas de tortura, os gritos agudos dessa desgraçada deram o golpe de misericórdia na minha sanidade.
Mais uma experiência horrível em Triagem. O que consola e dá forças para respirar serenamente é que foi a última. Jamais terei minha vid sugada por estes incompetentes de novo.
A única coisa boa disso tudo é que essa é a hora da galera endinheirada de zona sul, filhinhos de papai se foderem um pouco na vida. Pegam fila, passam calor e sede e tomam um chá fortíssimo de cadeira. Ou melhor, de cimento.
Adeus Triagem, espero nunca mais lhe encontrar novamente.

2 comentários:

Unknown disse...

Qual éo nome desse quartel aisso?

Unknown disse...

Aí?*

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